por Olivia de Souza
Seg, 23 de Julho de 2012 14:43
“Olá, meu nome é Deus. Criadora do universo e tal… Eterna, onisciente, onipresente… Putz, adoro passar hidrantante”. Deus é amante de futebol, luta boxe, frequenta shows de rock’n'roll e usa camisetas de bandas punks feministas como Slits, X-Rey Spex e Bulimia. Sobretudo, Deus é mulher, negra, dona de um senhor black power, tem um namorado cuca fresca chamado Carlos, é dona de uma sex shop e adora comer pastel de camarão tomando chope com o Diabo, por quem morre de tesão.
Bastante interessada nas frivolidades da vida – sobretudo em sexo e suas variações –, a personagem se opõe à figura do Deus ocidental de barbas compridas, severo e soberano, e é fruto da mente do quadrinista paulista Rafael Campos Rocha, que acaba de lançar a HQ Deus, essa gostosa (Companhia das Letras). Nela, acompanhamos sete dias na vida da Criadora: o café da manhã ao lado do namorado, a ida à caçada anual aos gnus na África, a visita à cartomante, ou ainda passatempos como assistir ao jogo de futebol do Barcelona com o amigo íntimo Karl Marx. Aliás, Deus é fã do craque Lionel Messi.
Com capa de Rafael Coutinho – autor de Cachalote, outro destaque dos quadrinhos nacionais de 2010 –, a HQ é uma crítica bem humorada à repressão sexual, ao machismo e ao preconceito que cercam o universo das religiões monoteístas da cultura ocidental. “Tem duas coisas que me levam a criar: falar de alguma coisa que gosto e de alguma coisa que detesto. Toda vez que fico irritado com alguma coisa, sento no computador e procuro fazer um deboche dela”, afirmou Rafael Campos, em entrevista à Continente.
Oriundo das artes plásticas, demorou para que o paulista redescobrisse o amor pelos quadrinhos de infância, o que aconteceu aos 37 anos, durante sua morada em Barcelona. E foi graças à internet, circulando por uma lista seleta de e-mails, que a personagem se popularizou, bem como outros personagens e séries, como Gaysus, O Poder do Pensamento Negativo, Curvman, O Chefe, entre outros. Depois de passar por publicações como a revista Piauí, Deus, hoje, também dá as caras pela Folha de S. Paulo, que tem Rafael como um dos principais ilustradores da casa, sobretudo no caderno Ilustríssima. Amém!
Como surgiu a ideia de criar Deus, e por que uma mulher, negra, sexual, gostosa, com costumes tão próximos dos seres humanos?
Ela surgiu em uma série dentro da minha extinta publicação digital O Poder do Pensamento Negativo – Como destruir a sua vida e das pessoas que você ama em duas lições, que eu distribuía por e-mail. A publicação foi substituída justamente por Deus, essa gostosa que ainda envio para quem pede pra receber. A série chamava Tetralogia Cruciforme e era baseada em apócrifos da trajetória do Cristo. Os apócrifos são muito divertidos e debochados e tem a clara intenção de esculhambar a doutrina cristã. Eu adoro esculhambação de gente que se dá ares e que acha que detém a Verdade, e quis criar um Deus que fosse oposto ao Deus monoteísta civilizatório. Então, onde Ele é masculino, solar, militar, moralista, dogmático, nacionalista, racista e prepotente, meu personagem é feminino, noturno, conciliador, sexual, relaxada, internacionalista, multicultural e mundana. As pessoas que amo são assim, e foi pra elas que fiz meu personagem.
Falar sobre religião sempre envolve muita polêmica e você também fez isso com outro personagem seu, o Gaysus. Como é a recepção do público, ainda mais agora com o lançamento do livro, o que faz com que mais pessoas conheçam o teu trabalho?
As pessoas detestavam mais quando era uma publicação independente. Por mais que as pessoas se digam tementes e amantes de Deus, amam ainda mais grandes empresas e sua aura de sucesso. Trabalhar em um grande jornal e publicar por uma grande editora diminuiu as críticas dirigidas à minha pessoa. Vez por outra meu editor da Folha recebe uma carta indignada (algumas são deliciosas e estão guardadas com carinho). Claro que ainda recebo e-mails ameaçadores, mas a internet é um lugar propício para florescer o ódio e realmente são poucos os que me chateiam. De qualquer forma, acho divertido irritar um nacionalista (esse racista acovardado) e saber que estraguei um pouco o seu almoço. E essa informação que muito me alegra eu só obtenho quando ele se dá ao trabalho de me mandar um e-mail me xingando.
Você usou alguma referência do teu mundo pra compor o universo de Deus? Como por exemplo, a escolha das bandas que estampam as camisetas que a personagem usa ao longo do livro ou até mesmo o pastelzinho de camarão que ela come com o Diabo no boteco?
Olha, é a minha vida, ali. Coisas que eu ouço estão nas camisetas, meu boteco de esquina é o boteco dela. Nos últimos anos ouvi muito o punk rock feminino. Gosto muito desse deboche da autoridade e de seu feminismo explosivo. O rock das moças do Slits, por exemplo, assim como o punk em geral, fazem uma coisa que acho muito importante também, questionar a tal “qualidade artística”, essa régua eurocêntrica da cagação de regra. E o punk feminino faz isso sem perder o bom humor e a leveza. Na verdade, às vezes penso que Deus sou eu, se eu fosse um ser humano melhor. Ou seja, uma negona gostosa e descontraída. Ela curte as mesmas coisas que eu – o pastelzinho de camarão é uma iguaria de um boteco aqui da esquina, que aliás, é o boteco que desenhei na história – comer animais mortos, beber sem restrições, jogar conversa fora… bom, todo mundo gosta disso.
Recentemente você lançou em seu blog alguns quadrinhos bastante críticos sobre Deus na Flip. O que você acha desses encontros e qual a tua opinião sobre essa aproximação que hoje cada vez mais pessoas fazem entre o quadrinho e a literatura?
Cara, sou um leitor das duas coisas, de Literatura e Quadrinhos. E amo o Paul Celan como amo o Hugo Pratt. Acho que para quem consome arte sem um interesse (ascender socialmente, parecer mais inteligente, impressionar alguém do sexo oposto) essas questões são irrelevantes. Aliás, detesto essa coisa de Literatura com maiúsculo, assim como detesto Arte com maiúsculo. Prefiro a arte minúscula do Mark Manders e os textos minúsculos do Robert Walser. Nunca fui à Flip e não sou um frequentador de lugares de Cultura, principalmente porque nesses lugares a Cultura é assim, com maiúscula. Sei lá, também acho um mundo muito duro esse, da Cultura e da Arte. Uma coisa muito burguesa e dura, de sorrisos para uns e cara virada para outros. Credo.
O que te fez despertar para o universo dos quadrinhos e o que te inspira a criar?
Comecei a ler quadrinhos criança, como todo mundo. E parei por muitos anos produzindo e estudando artes plásticas. Voltei aos 37 anos, morando em Barcelona. Foi também uma forma de aprender a língua. Mas o que fez mesmo foi me apaixonar por quadrinhos mais uma vez. Um velho amor reencontrado. Com relação ao que me leva a criar, tem duas coisas que me fazem criar: falar de alguma coisa que gosto e de alguma coisa que detesto. Toda vez que fico irritado com alguma coisa, sento no computador e procuro fazer um deboche dela. Me irrita o nacionalismo esportivo e faço uma tira falando mal da Copa do Mundo. Por outro lado, assisto um jogo do Barcelona e faço uma homenagem ao Messi. Assim com crocodilos (que adoro) e a OTAN (que desprezo). Acho que é isso.
Quais artistas das HQs são suas principais referências?
George Herriman e a geração do começo do século passado, Moebius e a turma de Metal Hurlant, Crumb e a turma da Zap, Cristophe Blain e esse novo quadrinho francês. Também adoro Roy Crane e as primeiras histórias de aventura dos anos 30, Batman e as bizarrices da “golden age” dos super-heróis. Os quadrinhos eróticos dos anos 60 como Pravda e Valentina e a geração de Pazienza da Frigidaire. Putz, eu me influencio pelo que estou lendo na hora e incorporo quase imediatamente alguma coisa ao meu trabalho. Passo dois dias folheando Tales from the Crypt, da EC Comics, e já imito desajeitadamente a forma do Kurtzman tracejar, os ângulos usados nas histórias… sou muito volúvel em arte. Foi passar um mês com Valentina, que nem sou tão fã, para abandonar os quadrinhos traçados regularmente nas tiras por uma diagramação mais livre.
Já tem em mente lançar outras histórias em livro, como “O Poder do Pensamento Negativo” ou uma compilação de outros personagens seus?
Menina, me perguntaram isso há pouco tempo e eu disse que não, porque estava irritado com esse pessimismo direitista que está na moda no colunismo brasileiro. Sem falar na praga do humor “politicamente incorreto”, que consiste em um bando de boçal SEM GRAÇA revitalizando piada racista, nacionalista, machista e essas merdas. E achei que o termo “pensamento negativo” podia me identificar com essa escumalha. Mas, como é um projeto acabado, acho que vou reconsiderar. São umas 100 tirinhas que dariam um livrinho razoável. A ver.
* Texto originalmente publicado para o site da revista Continente